Feriado na Borgonha: vinhos, vilarejos e la route des grands crus
Descubra por que os vinhos da Borgonha têm “endereço”. Um relato pessoal de um tour de 3 dias passando por vinícolas, vilarejos e vinhedos históricos da Côte d’Or.
Nada melhor do que aproveitar um final de semana prolongado para uma roadtrip pelo interior da França. Desta vez, escolhemos um destino especial: a Côte d’Or, no coração da Borgonha — uma das regiões vinícolas mais históricas e emblemáticas do mundo.
Partimos do norte da Bélgica na quinta-feira bem cedo e, após quase oito horas de estrada, chegamos à nossa base: uma pequena propriedade rural cercada por campos de trigo, ainda verdes, a apenas 15 minutos de Beaune, a principal cidade da região. Um refúgio tranquilo, ideal para quem quer aproveitar a Borgonha com calma e taça na mão.
Beaune e Dijon: cidades históticas muito movimentadas
Após o check-in fomos direto a Beaune para caminhar um pouco e sentir a vibe da cidade. De cara, já demos de frente com a Notre-Dame, num centro histórico com dezenas de restaurantes, enotecas e locais que oferecem wine tastings com aperitivos.
No dia seguinte, com mais calma: visitamos o icônico Hospices de Beaune, e exploramos as pequenas ruas do centro histórico. Obviamente uma pausa para almoçar um dos pratos símbolos da região: o clássico Boeuf Bourguignon, servido com um pinot noir local. Este é um prato de carnes e legumes lentamente cozidos no vinho da borgonha. Uma harmonização regional perfeita e autêntica.
Dijon é outra importante cidade histórica da região que também aproveitamos para conhecer. Lá fizemos uma breve caminhada pelo centro histórico seguindo a “Rota da Coruja” (Parcours de la Chouette) — uma trilha urbana que conecta os principais pontos históricos da cidade com pequenas corujas de bronze marcadas no chão. É uma forma diferente para visitar e conhecer um pouco da cidade.
La Route des Grands Crus
Basicamente a rota se estende de Beaune a Dijon, em uma rodovia paralela a autoestrada. E por esta rodovia, que passa pelo vilarejo de Nuits-Saint-Georges é possível avistar e passar próximo dos famosos vinhedos. A paisagem do trajeto, por si só, já vale a viagem. Dirigir entre vilarejos como Nuits-Saint-Georges e Gevrey-Chambertin é como ter a rara oportunidade de vivenciar parte da história do vinho. Os nomes nas placas das vinhas — muitas vezes minúsculas, divididas por muros de pedra e cruzes solitárias — transmitem séculos de tradição.
Um dos grandes momentos da viagem pela rota do grand cru foi a visita à vinícola em Vosne-Romanée, a Domaine Rion.
Fomos recebidos com simpatia e conduzidos por uma degustação que incluiu alguns de seus vinhos mais expressivos. Destaque para um Vosne-Romanée Premier Cru e o Clos de Vougeot Grand Cru 1989 cheio de camadas, elegância e tipicidade. O tipo de vinho que seguramente entrou na minha lista dos top de todos os tempos degustados.
Escolhemos a Domaine Rion por ser uma vinícola familiar, que proporciona visita e degustação de vinhos guiadas pelos proprietários. Além do mais, a sua localização em Vosne-Romanée com o principal vinhedo próximo ao da Romanée-Conti foi outro ponto relevante na escolha.
🌱 Entendendo a Borgonha sem complicar: os tais “micro-terroirs”
Depois dessa imersão, ficou ainda mais claro por que a Borgonha é tão falada (e às vezes mal compreendida). Para quem não está familiarizado com o sistema de vinhos da região, tudo pode parecer confuso no início: nomes longos, muitas comunas, preços variados... Mas a lógica por trás disso é simples se pensarmos em vinhedos como jardins — muitos, pequenos, e com características próprias.
Sendo assim, a Borgonha é um mosaico de micro-terroirs. Ou seja, imagine a Borgonha não como um grande vinhedo, mas como um quebra-cabeça de milhares de peças minúsculas, onde cada pedacinho de solo pode produzir vinhos com sabor, estrutura e estilo diferentes. Essas peças são os micro-terroirs, e é isso que faz a Borgonha ser única.
Por que tanta diferença em tão pouco espaço?
Entre diversos fatores que fazem a diferença no cultivo e maturação das uvas eu menciono 3 para que fique mais simples e didático o entendimento:
O solo muda a cada passo: Um terreno pode ter mais calcário (dando vinhos elegantes e minerais), outro pode ter mais argila (mais corpo e estrutura).
O microclima também varia: Uma encosta voltada para o leste pega o sol da manhã; uma voltada para o oeste, o calor da tarde. A inclinação, implica também na incidência dos raios solares e drenagem da água em dias de chuva.
Séculos de observação: Ao longo de centenas de anos, os produtores da região foram percebendo quais pedaços de terra produziam vinhos excepcionais. E não era sorte — era observação cuidadosa, repetida geração após geração.
Como os vinhos da Borgonha são classificados?
Esse conhecimento virou um sistema de classificação que existe até hoje e colocam os vinhos da Borgonha em forma de piramidade qualitativa:
Vinhos regionais: compõem a base da pirâmide, são aqueles de menor valor agregado e os identificamos no mercado basicamente atraves das escritas “Borgonha” ou até mesmo a identificação da uva “Pinot Noir”. Isso significa que as uvas para produzir o vinho advêm dos vinhedos da porção plana que margeiam a autoestrada que corta a região;
Village: classificação imediatamente superior a regional. Os vinhos são produzidos dentro dos limites de uma vila específica, com boas características locais. Também são vinhedos planos e ficam entre a rodovia e a encosta paralela a estrada onde estão os melhores vinhedos.
Premier Cru: terroirs excelentes, um degrau abaixo dos Grand Crus. São parcelas do alto da colina ou também pensando numa subida, logo no início do aclive (ao lado dos vinhedos village). Portanto pode ser uma parcela de topo ou imediatamente de início da inclinação do terreno.
Grand Cru: os melhores micro-terroirs, com reputação histórica e vinhos de altíssimo nível. Representam só 2% da produção total da Borgonha! De maneira simplória, são as porções médias dos relevo. Onde a inclinação, exposição solar, quantidade de sedimentos são ótimos.
O vinho com endereço
Beber um Chambertin Grand Cru ou um Vosne-Romanée Grand Cru não é só experimentar um vinho — é visitar um lugar muito específico. A garrafa traz a “identidade geológica” do vinho.
Repetindo a analogia anterior, a Borgonha é como um bairro cheio de jardins de videiras. Cada fração tem um solo e uma posição particular, então mesmo vinhas coladas umas às outras podem produzir vinhos com gostos muito distintos. Para que esses vinhos consigam expressar suas peculiaridades, os grandes produtores buscam a mínima interferência — tratando cada etapa do ciclo da videira e da vinificação com muito respeito e cuidado.
Vivenciamos isso de forma marcante na visita à Domaine Rion. Fizemos um tour exclusivo de quase duas horas com a matriarca da vinícola, que já está na sexta geração da família. Ao final, diante do lendário vinhedo Romanée-Conti, vimos uma senhora podando as videiras com tamanho cuidado que parecia estar dialogando com a planta — como se pedisse permissão para tocar em cada folha antes de retirá-la cuidadosamente. Uma imagem silenciosa e poderosa do vínculo entre ser humano e terroir.
Curiosidade: Muros, cruzes e heranças da terra
Uma das coisas que mais chamam a atenção na Borgonha são os vinhedos murados — chamados de Clos. Esses muros de pedra existem desde a Idade Média, quando monges cistercienses delimitavam parcelas especiais de vinhas. Hoje, esses Clos são ícones de prestígio e tradição.
Além dos vinhedos murados, também vimos muitas cruzes de pedra nos campos (que antes eu achava que existia apenas uma no vinhedo da Romanée-Conti, mas não). Elas são símbolos religiosos que protegem ou homenageiam os vinhedos, e fazem parte do imaginário católico rural da região.
E, por último, por que os vinhedos são tão pequenos e divididos? Por exemplo o próprio Romanée é um vinhedo de 1,8 hectares (aproximadamente 2 campos de futebol). Isso vem da Revolução Francesa e do Código Napoleônico, que determinava a partilha igual entre herdeiros. Com o tempo, cada vinhedo foi sendo fragmentado entre dezenas de produtores — por isso, em uma mesma parcela como Clos de Vougeot, há mais de 80 proprietários!
O que ficou de fora — e por que voltar
A região é grande e cheia de possibilidades. Faltaram os grandes brancos da Côte de Beaune, a elegância mineral de Chablis, e até uma esticada ao Beaujolais, mais ao sul.
E ficou também o desejo de fazer a Rota dos Grands Crus de bicicleta, como vimos muitos visitantes fazendo. Parece ser de fato a melhor forma para visitar a região.
Uma última taça
A Borgonha é um lugar onde cada taça de vinho conta uma história. É preciso ir com tempo, com curiosidade e, principalmente, com respeito. Não são vinhos óbvios. São sutis, cheios de nuance, com elegância e marca.
Em três dias, vimos só um pedaço. Mas foi o suficiente para entender por que essa é uma das regiões mais históricas e admiradas do mundo do vinho. E claro — já estamos prontos para voltar.
Muito obrigado por acompanhar o “Um vinho em 1 minuto”!
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Um grande abraço e até o próximo post!
Adorei ler esta edição….pois viajei sentindo a paisagem e os seus diferentes aromas.
Mais um texto que parece que foi escrito LÁ, sentado numa pedra e com uma taça de vinho na mão! Muita inspiração!!!