O futuro dos vinhos (parte 2): novas regiões produtoras e o trabalho da ciência.
As vinhas "se adaptam" e novas regiões emergem. Como a ciência e os produtores enfrentam os desafios climáticos para moldar o futuro da viticultura e dos vinhos.
Na semana passada, publicamos o artigo "O Futuro dos Vinhos: como o aquecimento global transforma a viticultura" (errata ao final do texto sobre o termo “aquecimento global1”) onde apresentamos o impacto das mudanças climáticas já percebidas em regiões vinícolas tradicionais da Europa, tais como o aumento das temperaturas, a alteração no regime de chuvas e eventos climáticos extremos que impactam diretamente a viticultura.
Já nesta semana, para complementar a série, vamos falar sobre as novas fronteiras de culvivo e o trabalho da ciência para enfrentar estes problemas.
O Surgimento de Regiões Emergentes
Com o aumento gradual das temperaturas médias nas latitudes tradicionais para o cultivo de uvas2, regiões que antes eram consideradas impróprias para a viticultura estão ganhando destaque internacional. O caso mais emblemático é o da Inglaterra, que, em poucos anos, se tornou um dos produtores de espumantes mais promissores do mundo. Uvas como Chardonnay, Pinot Noir e Pinot Meunier, como as cultivadas em Champagne, na França, agora encontram condições ideais de cultivo nas regiões do sul da Inglaterra, especialmente em Sussex e Kent. Com temperaturas cada vez mais semelhantes às que existiam em Champagne há décadas, o país está produzindo vinhos espumantes de altíssima qualidade, alguns dos quais já competem diretamente com os clássicos franceses.
Nyetimber Classic Cuvée (Inglaterra): Um espumante inglês que rivaliza com os Champagnes mais renomados.
Gusbourne Brut Reserve (Inglaterra): Um espumante fresco e complexo, que reflete o potencial vinícola da Inglaterra.
A Bélgica também é um exemplo de região emergente. Ainda desconhecida no mundo da viticultura, o país agora se destaca na produção de vinhos brancos e espumantes, com ênfase em variedades como Chardonnay e Pinot Blanc. As condições mais amenas, apesar do alto volume de chuvas, tornam o país apto para produzir vinhos de qualidade e destaco dois produtores
Château Bon Baron: Se destaca pela produção de vinhos finos que refletem o terroir único da região. Com foco em técnicas de viticultura sustentável. Inclusive é a primeira vinícola belga a ter a certificação “Fair’n’ Green - focada na sustentabilidade holística em todas as etapas, desde os negócios, gestão, meio ambiente e sociedade.
Chardonnay Meerdael: Esta é uma das cantinas pioneiras na produção de vinho espumante na Bélgica, localizada em Oud-Heverlee, perto de Lovaina. Chardonnay Meerdael é conhecida por seu método tradicional de produção de espumantes “blanc de blancs”.
Em breve postarei algo sobre a minha visita à cantina Chateau Bon Baron, mas posso dizer que de modo geral os produtores Belgas tem um bom serviço de acolhimento, tour e degustação a preços infinitamente inferiores ao que estamos habituados a pagar principalmente na Itália e França. Por exemplo, um tour pela cantina com degustação de 8 vinhos custa 30€/pessoa. Ou ainda por 85€/pessoa há a possibilidade de fazer o tour, ter um almoço/jantar com menu degustação com 3 pratos acompanhado com todos os vinhos.
Outras regiões que podemos destacar é a Escandinávia, com países como a Suécia e a Dinamarca testando as fronteiras da viticultura. Nessas regiões, é comum o cultivo de variedades híbridas, que são geneticamente cruzadas para suportar climas mais extremos, e os vinhos resultantes estão conquistando reconhecimento, abrindo novas oportunidades aos produtores da região.
Destaque para o produtor Blaxsta Vingard (Suécia) que produz Ice Wine: Um raro vinho de sobremesa feito sob condições climáticas específicas.
As alternativas apresentadas pela ciência
O professor italiano Atilio Scienza, um dos maiores especialistas em viticultura do mundo, é um profissional atuante nas discussões sobre o impacto das mudanças climáticas na viticultura. Há dois anos tive a oportunidade de assistir uma palestra dele na Vinitaly e para ele,
a ideia de terroir não é fixa, mas adaptativa ao longo dos anos, e essas regiões tradicionais são um exemplo vivo desse dinamismo. O que elas fazem nos últimos anos é uma tentativa de "salvar o terroir" através da introdução de novas variedades ou mesmo mudanças nas regulamentações para se adaptarem as condições.
A seleção genética de variedades de uvas mais resistentes ao calor, à seca e a outros extremos climáticos é uma opção. Mas o professor aponta que a viticultura tradicional precisa ser mais flexível para este trabalho. Pois a edição genética na agricultura permite o desenvolvimento de plantas com características específicas sem a perda das qualidades sensoriais essenciais para a produção de vinhos de qualidade. Por outro lado, falamos de outras tipos de uvas e vinhos que não os clássicos que estamos já acostumados.
Em outras palavras, o futuro da viticultura pode implicar mudanças significativas naquilo que entendemos como os “grandes vinhos” de hoje. Regiões icônicas como a Borgonha, onde a Pinot Noir é cultivada há séculos, podem não ser mais capazes de produzir vinhos como outrora. Mas se considerarmos o conceito de terrior dinâmico, pode ser que em um futuro não muito distante, outras áreas possam produzir Pinot Noir de alta qualidade e complexidade um dia encontrados apenas na Borgonha.
Sem dúvida, nos próximos anos presenciaremos ainda mais mudanças globais e, por consequência, veremos mudanças nas regiões produtoras, nos estilos dos vinhos, e no padrão de consumo - que inclusive já impacta na produção, vide a França gastando 120 milhões de Euros, com aprovação da União Européia, para destruir 30 mil hectares de vinhedos para ajustar-se ao nível de consumo atual.
No fim das contas, diante das inevitáveis mudanças, não podemos deixar de ter a curiosidade para degustar, para descobrir nossos rótulos e regiões para, em tempo, podermos compará-los aos clássicos de hoje.
Um abraço e até a próxima edição.
ERRATA: No texto da semana passada utilizamos o termo "aquecimento global" como referência às mudanças no clima que afetam a viticultura. No entanto, gostaria de ressaltar que o termo mais apropriado para entender a complexidade das mudanças é "transformações globais" ou "mudanças climáticas". Pois essas expressões englobam também os eventos extremos que impactam as regiões vinícolas.
A viticultura tradicional encontra-se entre as latitudes 30º e 50º norte e sul. Na faixa norte, por exemplo, encontramos França, Itália, Portugal, Espanha, Estados Unidos. Na sul encontramos Chile, Argentina, Uruguai, Africa do Sul, Austrália e Nova Zelância).